Semântica – Neutralizar Pode Significar Matar

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A mídia está divulgando que o militar General Mario Fernandes, investigado como integrante dos grupos que planejaram realizar um golpe de estado contra a eleição e posse de Lula, em declaração à justiça admitiu que teve um “pensamento digitalizado”, de plano denominado “Punhal Verde e Amarelo”, destinado a “neutralizar” Lula, Alckmin e Moraes, autoridades dos poderes constitucionais brasileiros.

Declarou que, em Brasília, nas dependências do Palácio do Planalto, “criou documento impresso” do plano pensado, mas que não o compartilhou com ninguém.

O advogado dele declarou que seu cliente não teve intenção de “matar” as autoridades. Afirma que ele teve “pensamento digitalizado” de “neutralizar” as autoridades, e que esse termo não significa “matar”.

A palavra “neutralizar” tem diversos sinônimos, dependendo do contexto em que é usada. Seguem os principais sinônimos reconhecidos pelos dicionários da língua portuguesa disponíveis no Brasil, como Houaiss, Michaelis, Aurélio e Priberam, considerando o sentido militar.

No contexto militar ou estratégico, “neutralizar” – impedir que algo ou alguém cause dano -, tem os seguintes sinônimos; desativar, eliminar, inutilizar, incapacitar, desarmar, conter e/ou desarticular.

O caso envolvendo um general militar que teria admitido à Justiça ter elaborado e impresso um plano, ainda que não compartilhado, para “neutralizar” autoridades dos Três Poderes, pode sim configurar crime segundo a legislação penal brasileira, mesmo na ausência de execução do plano.

Segue análise jurídica objetiva, com base no Código Penal Brasileiro – CP, na Lei de Segurança Nacional (revogada, mas parcialmente substituída pela Lei 14.197/2021, que alterou o CP), e outros dispositivos pertinentes.

Ressalta-se possíveis enquadramentos, mesmo considerando a alegada “falta de intenção de matar”.

1. Artigo 286 do Código Penal – Incitação ao Crime

“Incitar, publicamente, a prática de crime” – Pena: detenção de 3 a 6 meses, ou multa.

Embora o general afirme que não compartilhou o documento, a produção física de um plano com objetivo criminoso, se levada à Justiça, pode ser entendida como um ato preparatório de incitação caso existam indícios de intenção de posterior divulgação ou uso do documento.

Se restar comprovado que o plano tinha o potencial de incitar terceiros a agir, ainda que não tenha sido de fato compartilhado, esse artigo pode ser cogitado.

2. Artigo 288 – Associação Criminosa

“Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes” – Pena: reclusão de 1 a 3 anos.

Se a investigação indicar que o general fazia parte de um grupo (formal ou informal) com finalidade golpista, como indicado pela menção a “grupos que planejaram”, e o plano foi apenas parte dessa articulação, poderá incidir aqui a tipificação por associação criminosa, ou mesmo sua forma mais grave.

Artigo 288-A – Organização Criminosa, com penas mais severas (3 a 8 anos), se restar comprovada estrutura ordenada e divisão de tarefas.

3. Artigo 359-L – Tentativa de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito – (Inserido pela Lei 14.197/2021)

“Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.” – Pena: reclusão de 4 a 8 anos, além da pena correspondente à violência.

O simples planejamento de um golpe de Estado já configura tentativa de atentado ao Estado Democrático de Direito. Ainda que o plano não tenha sido executado nem divulgado, o ato de materializar a ideia em um documento pode ser entendido como início da execução ou ato preparatório punível, dada a gravidade do bem jurídico tutelado.

Mesmo que a defesa alegue que “neutralizar” não signifique “matar”, os sinônimos aceitos no meio militar, como eliminar, desativar, incapacitar, desarticular, reforçam a interpretação de que o plano visava atingir a capacidade de ação de autoridades legitimamente constituídas, o que se alinha com o objetivo de abolir violentamente os poderes da República.

4. Artigo 359-M – Golpe de Estado

“Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.” – Pena: reclusão de 4 a 12 anos.

A criação de plano escrito para “neutralizar” Lula (Presidente), Alckmin (Vice) e Moraes (Ministro do STF) pode ser interpretada como tentativa de preparar um golpe de Estado, independentemente de o plano ter sido executado ou não.

O conceito de “grave ameaça” aqui não exige concretização imediata: o simples preparo documentado pode ser interpretado como ato dirigido a esse fim, especialmente no contexto de intentonas golpistas.

5. Artigo 15 do Código Penal – Desistência Voluntária e Arrependimento Eficaz

Esse artigo só se aplica quando o agente inicia a execução de um crime e desiste ou impede o resultado.

Não se aplica ao caso se o ato for considerado meramente preparatório, mas se for considerado ato de execução inicial, a alegação de “não ter compartilhado” poderia ser usada pela defesa com base nesse artigo. A eficácia disso dependerá da convicção do julgador.

6. Impressão de Documento como Elemento de Prova do Dolo

A criação de um documento impresso com conteúdo criminoso, mesmo não difundido, é um fortíssimo indicativo de dolo (vontade consciente de cometer o crime). Isso se torna ainda mais grave quando realizado dentro do Palácio do Planalto, o que pode evidenciar a utilização de instalações oficiais para fins criminosos contra o próprio Estado.

7. Crimes Militares (Código Penal Militar)

Dada a condição de oficial general do Exército, também pode haver responsabilização por crime militar, como:

Artigo 166 do CPM – Conspiração – “Concertarem-se militares ou assemelhados para a prática de crime militar.”

E outros artigos que tratam de crimes contra a autoridade e a hierarquia, especialmente se o plano se destinava a violar a ordem institucional.

Conclusão

Mesmo sem o compartilhamento do plano, a admissão de que houve um “pensamento digitalizado” formalizado por escrito pode ser juridicamente suficiente para configurar o início da execução de crime contra o Estado Democrático de Direito, e até tentativa de golpe de Estado, especialmente se houver outros indícios de articulação com terceiros.

A terminologia usada, “neutralizar”, ainda que contestada pela defesa, tem, sim, conotação perigosa no vocabulário militar e de segurança. Dicionários e usos oficiais respaldam essa leitura, podendo ser considerada pela acusação e pelo Judiciário como indicativo de violência ou ameaça grave.

Sim, existe uma diferença jurídica significativa entre alguém declarar que apenas “pensou” em cometer um crime, e alguém admitir que “imprimiu um documento” com o plano de um crime.

Essa distinção pode representar a linha que separa o mero pensamento impunível de um ato preparatório punível ou até início de execução de um crime, conforme a legislação penal brasileira.

Seguem fundamentos dessa distinção.

1. Pensamento criminal: impunível

No direito penal brasileiro, o pensamento por si só não é punível. Isso decorre do princípio da legalidade e da exteriorização da conduta. A pessoa pode ter fantasias, desejos ou ideias criminosas, mas enquanto não houver manifestação externa, não há crime, pois não há fato típico penalmente relevante.

Fundamento jurídico:

  • O direito penal não pune intenções ou pensamentos internos.
  • Nullum crimen sine actione externa (não há crime sem ação externa).

Exemplo: Alguém pensa em matar uma autoridade, mas não diz a ninguém, não faz plano, não compra arma, não toma qualquer atitude concreta. Neste caso, não há crime.

2. Ato externo: início de conduta punível

Quando a pessoa transforma o pensamento em uma ação concreta, como registrar por escrito, desenhar, planejar, imprimir, armazenar dados, adquirir meios ou articular com terceiros, ela sai da esfera do pensamento e entra na esfera da conduta. A partir desse ponto, pode haver:

  • Ato preparatório punível, se houver previsão legal específica.
  • Tentativa de crime, se o ato for interpretado como início da execução, conforme o artigo 14, II, do Código Penal.

3. Impressão de documento: exteriorização e indício de dolo

O ato de imprimir um plano criminoso configura uma ação concreta que demonstra dolo (intenção) e planejamento deliberado, especialmente se:

  • O conteúdo descreve alvos, objetivos, meios de execução.
  • O autor tem meios ou posição institucional para tentar realizar o plano.
  • O contexto revela ligação com outros atos preparatórios ou grupos.

Consequência: A impressão de um plano para “neutralizar” autoridades pode ser entendida como:

  • Ato preparatório punível, se vinculado a crime previsto em lei com repressão específica à preparação (como golpe de Estado).
  • Ou início da execução, se demonstrar que o plano estava em fase prática de implementação, ainda que sem ação direta.

4. Precedentes e doutrina penal

A doutrina penal brasileira, inclusive obras como as de Rogério Greco, Luiz Flávio Gomes e Fernando Capez, entende que:

  • O simples planejamento documentado de crime contra a ordem democrática ou segurança nacional pode configurar início de execução, se o conteúdo for suficientemente detalhado e demonstrar iminência.
  • Ato preparatório não é punido, salvo exceções legais, como:
    • Associação criminosa (art. 288),
    • Golpe de Estado ou atentado ao Estado de Direito (art. 359-M e 359-L),
    • Crimes militares específicos (como conspiração).

5. Diferença prática e jurídica

SituaçãoClassificação JurídicaResponsabilidade
Pensamento internoNão há crimeImpunível
Plano mental externado verbalmentePossivelmente indício, mas não punível isoladamenteAinda impunível
Impressão ou criação de plano escritoAto externo concreto – pode ser ato preparatório punível ou tentativaPunível, conforme contexto
Compartilhamento com terceirosAgrava a conduta – pode configurar tentativa, conspiração ou associação criminosaPunível

Conclusão

Sim, a impressão do plano criminal marca uma mudança de categoria jurídica, saindo da esfera do pensamento e entrando na da conduta exteriorizada, que pode configurar ato preparatório punível ou tentativa de crime, a depender do caso. O contexto (local, intenção, natureza do plano, cargo do agente, ligação com terceiros) é decisivo para o enquadramento.

Essa distinção é essencial para o Ministério Público e o Judiciário avaliarem se houve crime e qual sua gravidade.

Fontes; pesquisas virtuais.

Paulo Dirceu Dias
paulodias@pdias.com.br
Sorocaba – SP
25/07/2025

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